O homem que caiu em Berlim
No final dos anos 1970, David Bowie (1947-2016) fugia de demônios e do vício em cocaína. Encontrou em Berlim um retiro espiritual e, principalmente, um renascimento sonoro. De 1976 a 1979, o artista criou três obras essenciais na sua discografia: “Low”, “Heroes” e “Lodger”. A chamada “trilogia de Berlim” foi um experimento intergênero que unia a disciplina da música eletrônica ao caos sonoro do rock’n’roll.
O momento era propício. A cena cultural da Alemanha pós-Segunda Guerra também buscava uma nova identidade, e foi um quarteto alemão que chamou a atenção do camaleão do rock para este novo som europeu. Em 1974, o Kraftwerk lançou “Autobahn”, disco que rejeitava a linguagem musical espontânea do rock americano.
Bowie ficou maravilhado com a ideia e reuniu os produtores Tony Visconti e Brian Eno para criar “Low”, de 1976. Logo na primeira audição, o disco revela-se desesperado e claustrofóbico. Nele, o camaleão estava mais interessado no som como textura do que como música. “Produzir músicas com uma pegada noise me pareceu bem lógico”, disse na época à revista Rolling Stone.
Ironicamente, a primeira parte da fase Berlim foi concebida nos estúdios do Château d’Hérouville, na França. Tony relembra que, durante as gravações, Eno instigava Bowie a sair de sua zona de conforto. O trio conseguiu convencer os músicos da banda, formados na escola improvisada do R&B, a reproduzirem a perfeição cirúrgica do rock alemão.
A influência de Eno foi ainda maior no lado B do disco que leva a ideia de fusão do rock com a eletrônica ao extremo. São quatro faixas instrumentais que exploram os sons espaciais criadas por sintetizadores. Destaque para “Warszawa”, pontuada com susssuros sombrios de Bowie.
Comparado com o som clínico do Kraftwerk, “Low” transborda emoção humana. Em uma entrevista de 1995, Bowie revela por que não se entregou totalmente à rigidez da música eletrônica alemã.
“A forma como o Kraftwerk abordava a música tinha, em si, pouco espaço em meu esquema de criação. Eles fizeram uma série de composições controladas e robóticas (…). Meu trabalho tendia a compor-se de obras expressionistas ligadas ao estado de ânimo, o protagonista (eu) entregando-se ao Zeitgeist, com pouco ou nenhum controle sobre sua vida. A música era, em sua maior parte, espontânea e criada no estúdio”.
Se “Low” lidava com os tormentos de Bowie, sua continuação, “Heroes”, de 1977, é um filho legítimo de Berlim. Os títulos das 10 faixas prestam homenagem à cidade: da atmosfera esquizofrênica das ruas explicitada em “Blackout” ao clima deprimente do bairro de imigrantes turcos em “Neukoin”. Contribuiu o fato de o disco ter sido inteiramente gravado nos estúdios Hansa, um antigo salão de bailes da Gestapo próximo ao Muro de Berlim.
A vista privilegiada serviu de inspiração para a faixa-título. “Eu via dois amantes que se encontravam todos os dias no Muro e me perguntava, por que eles se encontravam justamente lá?”, revelou anos depois.
“Heroes” é mágica e se tornou um hino no vasto cancioneiro de Bowie. Ancorada nos timbres do sintetizador EMS Synthi, a faixa é embriagada de um romantismo melancólico e foi a precurssora do movimento New Romantics, que tomaria conta dos anos 1980 e influenciaria a sonoridade de mestres do synthpop como o Human League e Depeche Mode.
“Lodger”, o ultimo capítulo da trilogia, é menos badalado. Bowie começou a se desvencilhar das influências europeias e fez um disco mais convencional. Na debochada e irreverente “D.J.”, o cantor prevê o futuro do culto aos disc-jóqueis. No videoclipe ele destrói uma cabine de DJ enquanto canta de forma irônica: “I am a D.J., I am what I play”.
Apesar das inovações, a fase Berlim não impressionou nas vendas. No começo da década de 1980, o cantor retornou a Nova York, onde gravou “Scary Monsters (And Super Creeps)”, obra em que encontrou um balanço entre as experimentações e a música pop comercial.
Porém, o impacto destes três discos ajudou a configurar um novo espírito musical. Ao unir a frieza da música sintética alemã com o calor do rock’n’roll, Bowie iluminou um futuro eletrônico.
OMELHOR DE BERLIM
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